Carlos Engemann
Marcia Amantino
Embora a sesmaria tenha sido doada aos padres inacianos em 1630, eles só começaram a levantar a fazenda no final do século. Provavelmente a fazenda surgiu de queimadas para facilitar a derrubada da mata nativa e dar lugar a gramíneas que serviriam de pastagem e a chamaram-na de Campos Novos para diferenciá-la da fazenda de Campos dos Goitacazes. A igreja estabelecida no local foi consagrada a Santo Inácio, militar espanhol canonizado em 1622 e fundador da Companhia de Jesus. Esta possuía um altar central e nele estava colocada a imagem do dileto fundador, cuja lenda reza guardou a carta deixada pelos jesuítas doando a fazenda aos moradores locais. Nos altares laterais estavam colocadas as imagens de Nossa Senhora da Conceição com o menino Jesus, de São José e de outros santos ou santas. Além dos crucifixos, objetos sagrados e de uma “pia batismal de pedra mármore movediça”, também havia grande quantidade de roupas para as imagens e para os celebrantes dos ofícios religiosos, bem como várias toalhas, alfaias sagradas e cortinas de tecidos e cores variadas. [1]
Do ponto de vista econômico, sua produção, como era peculiar às fazendas jesuíticas, era voltada principalmente para a criação de gado e alimentos. Mas também havia uma grande exploração econômica de madeiras, retiradas de suas matas e enviadas para o Rio de Janeiro. Em 1707 a fazenda possuía cerca de 1.500 cabeças de gado e em meados deste mesmo século este número não havia sofrido considerável mudança. Em 1721, o padre Antonio Cardozo, prepósito da província do Brasil, estava em Lisboa e foi intimado a prestar algumas informações sobre as questões fundiárias nesta região. Por suas informações fica-se sabendo que de acordo com o padre, as terras de campos Novos eram “alagadiças e inúteis na maior parte para a lavoura”.[2]
No entanto, a Ordem era dotada de espírito empreendedor e de vários membros com elevado grau de conhecimento técnico em várias áreas do conhecimento, como a hidráulica, por exemplo. Talvez pela experiência obtida em Santa Cruz, uma outra fazenda de terras alagadiças e não muito distante de Campos Novos, onde foram feitas várias obras de drenagem e contenção de fluxos de água, os padres estavam aptos a mudar a situação da propriedade. Alguns anos depois, iniciaram obras de drenagem de lagoas e abriu-se um canal para escoar a produção da fazenda, tal como em Santa Cruz. Em 1726, o governador do Rio de janeiro, Luiz Vaía Monteiro apresentava esta obra feita pelos inacianos como um modelo a ser seguido em uma situação parecida na cidade carioca.[3]
De acordo com Serafim Leite, citando informação prestada por algum jesuíta que esteve na fazenda, em 1741 ela ainda “não tinha chegado a última perfeição, mas nos seus vastíssimos campos poderiam pastar mais de 20.000 cabeças de gado.” [4] Estas previsões otimistas nunca chegaram a se concretizar. Em 1759, quando se encerra a fase jesuítica da fazenda, havia 1367 cabeças de gado e 19 gansos distribuídos em nove currais. Alguns anos depois, em 1775 houve uma sensível diminuição: havia apenas 1159 cabeças de gado distribuídas por oito currais. [5]
A história da fazenda de Campos Novos está intimamente ligada à história da ordem jesuíta no Brasil, desse modo, um dos grandes marcos na história da fazenda é dado quando a política pombalina de eliminação dos inacianos tem seu êxito. No ano de 1759, Pombal decretou a expulsão dos jesuítas de todo o Império português e o subseqüente seqüestro dos seus bens. De fato, este seria o primeiro passo no caminho da extinção total da ordem. Uma vez que os jesuítas foram forçados a abandonar suas posses, houve a necessidade de que elas passassem por um processo de inventário e avaliação, a fim de determinar quanto a Coroa poderia auferir com a venda destas em leilão.
A sesmaria onde foi estabelecida a fazenda de Campos Novos foi descrita nesse processo como tendo “de testada quatro léguas e meia principiando a mesma no sítio chamado de Genipapo partindo da parte do Norte com os moradores da baía Formosa, do Sul com as terras da aldeia dos índios de São Pedro e da do Norte correndo rumo ao Nordeste por costa do mesmo mar até a praia do Rio de São João e do Poente com o sertão até intestar nas terras de Bacaxá...”. Assim, foi delimitada a área pelo Juiz de Fora, Jorge Boto Machado Cardoso, um dos responsáveis pelo inventário destas terras e fazenda no ano de 1775.
Cada braça de terra foi avaliada em quinhentos réis e sua avaliação final foi da ordem de seis contos, setecentos e cinqüenta mil reis. No dia 13 de outubro de 1778 as terras e tudo mais que pertencia à fazenda foi arrematado pelo negociante que vivia na Praia de Dom Manuel, na cidade do Rio de Janeiro, Manoel Pereira Gonçalves, por 24:518$420 (vinte quatro contos, quinhentos e dezoito mil e quatrocentos e vinte reis). Estavam incluídos na transação os imóveis, as ferramentas, o gado, as plantações e os cativos. [6]
Existe pouca documentação disponível sobre esta fazenda e sobre seu cotidiano. Depois de Serafim Leite, que realizou uma gigantesca análise sobre as atividades econômicas dos jesuítas no Brasil buscando demonstrar que os bens materiais pertencentes à Ordem eram essenciais para a manutenção do projeto catequético e, portanto, colonial, a maior parte dos autores que de uma forma ou outra tratou sobre estas terras o fizeram com base em seus escritos. Se sobre o período em que a fazenda foi administrada pelos jesuítas há uma escassa documentação, a situação muda um pouco quando se busca conhecê-la no período posterior a expulsão dos religiosos. Com a ordem expulsa, realizado o confisco de todos os bens e elaborada a série de documentos para averiguar quais seriam estes bens, a partir de 1759 tem início a produção de alguns documentos que permitem inferir – pelo menos em parte- como era o cotidiano nesta e em outras fazendas que pertenciam aos inacianos. Tratam-se dos inventários e autos de seqüestros.
Através destes inventários é possível identificar uma série de características das propriedades e de sua mão-de-obra. As terras foram medidas e avaliadas de acordo com a qualidade, o tamanho e a produção agrícola e animal que eram capazes de gerar. Além disto, entraram nos inventários e nas avaliações, as ferrarias, as carpintarias, os materiais de cobre e prata, as casas de vivendas, as casas de caldeira e de purgar, as casas de fazer aguardente, enfim, qualquer serventia que fosse encontrada. As avaliações das fazendas e dos engenhos dependeram muito das condições em que estavam as terras, a produção, os bens e os cativos. Os bens das igrejas foram listados na maior parte das vezes, mas não entraram no cômputo geral dos inventários porque segundo as normas, tais bens pertenciam ao povo que utilizava a igreja.
Para esta fazenda em especial, há dois inventários. Um foi feito imediatamente após a ordem de expulsão. O documento é datado de 22 de novembro de 1759 e o segundo conjunto documental é de 30 de junho de 1775. Há, portanto, um espaço de 12 anos entre um e outro. Tempo suficiente para que algumas mudanças pudessem ser sentidas na fazenda.
Tabela n. 1 – Famílias cativas da fazenda de Campos Novos | ||
Tipologia | 1759 | 1775 |
Famílias Nucleares | 38 (65%) | 59 (73,5%) |
Viúvas | 15 (26%) | 11 (14%) |
Viúvos | 5 (9%) | 2 (2,5%) |
Famílias com 3 gerações | 0 | 2 (2,5%) |
Famílias só com a mãe | 0 | 6 (7,55%) |
Totais | 58 (100%) | 80 (100%) |
No inventário de 1775, estes números são um pouco diferentes. No espaço de 12 anos entre um inventário e outro nasceram cerca de 11 a 12 crianças anualmente. O número total de cativos havia subido para 323 cativos: 150 homens (46,44%) e 173 mulheres (53,56%), distribuídos por 53 senzalas cobertas de palha velha. Estas mudanças na população elevaram a média de moradores para pouco mais de seis por senzala. Parece que, além da moradia, a saída dos religiosos interferiu na organização das famílias. Em primeiro lugar, os casais continuaram tendo seus filhos, mesmo que não soubessem exatamente o que iria acontecer com suas vidas.
Mas mais do que isso, a organização familiar tornou-se mais complexa, apareceram no inventário duas famílias com mais de duas gerações e encontram-se seis mulheres que Estavam a criar seus rebentos sozinhas, algo que não apareceu no primeiro inventário. Todavia, destas, três casos eram de pais que haviam fugido e estavam na cidade ou em quilombos na região. Os outros três casos os pais não puderam ser identificados, mas em todos as crianças eram menores de 10 anos. Portanto, já nasceram sem a presença dos jesuítas.
O percentual de viúvos caiu para menos de um terço e o de viúvas reduziu quase pela metade, o que significa que as segundas núpcias estavam sendo mais efetuadas. Ao se comparar o que se viu na vida dos escravos de Campos Novos com o que se sucedeu aos cativos da fazenda de São Cristóvão, que foram todos vendidos em praça pública no Rio de Janeiro e suas famílias, destroçadas, parece que os escravos de Campos Novos preferiram acreditar que continuariam na fazenda assim como os escravos de Santa Cruz ou da fazenda mais próxima, de Santa Anna de Macaé que seria vendida apenas no ano seguinte.
Comparando os dois inventários, é possível perceber alguns dados interessantes com relação à formação destas famílias cativas e também os limites deste tipo de fonte. Um exemplo claro disto é a própria organização dos dados. No inventário de 1759 as famílias foram arroladas na seguinte ordem: primeiro, os casais, depois os viúvos seguidos das viúvas. Os rapazes de serviço e as raparigas vieram depois e foram seguidos pelas crianças masculinas e as femininas. No caso das crianças houve a preocupação em listar um de seus pais. Ao cruzar com a listagem dos casais, pode-se formar as famílias. Entretanto, no caso das raparigas e dos rapazes não há como relacionar todos com os casais. Apenas alguns nomes puderam ser identificados como filhos ou filhas destes.
No inventário de 1775, as famílias foram arroladas juntas. Isto facilitou a percepção sobre sua organização. Pelos dados do inventário de 1759 não é possível afirmar que não houvesse casos de famílias com três gerações, mas isto somente fica muito claro no seguinte. Por ele, identifica-se que em algumas famílias começaram a nascer crianças sem que as mães fossem legalmente casadas e sem que o nome do pai aparecesse de alguma forma. Este é o caso da família de Manoel Trindade casado com Barbara Vieira, uma escrava aleijada do braço esquerdo. O casal possuía oito filhos com idades variando de vinte e cinco anos a uma criança de peito. A filha mais velha, Andreza aparece listada com duas crianças. Uma de cinco anos e outra de dois anos e meio. Pode ser que fossem frutos de uma relação não oficial, uma vez que os padres já não estavam na fazenda.
Seja como for, podem ter sido esta a primeira comunidade de habitantes a ocupar as terras da fazenda Campos Novos, sob o olhar vigilante de seus proprietários. Comunidade esta, da qual sobraram apenas os centenários moradores Gabriel Pereira Damasceno e Normária Martins de Souza.[7] Certamente Gabriel e Normária trabalharam para um dos últimos donos da fazenda, Eugène Honold, que veio da Alemanha, na primeira metade do século XX, para plantar bananas em Campos Novos, ou ainda para Antônio Paterno, conhecido como marquês, responsável pelo desmantelamento da propriedade no início da segunda metade do século XX.[8] Possivelmente Gabriel foi um dos que foram enganados pelo tal marquês, com a promessa de um acordo para permanecer em Campos Novos, em troca de um pagamento mensal, e acabou assinando um papel em branco. Se assim o foi, também foi beneficiada pela ação do advogado Edílson Duarte que os defendeu, aconselhando a depositarem em juízo o valor mensal acordado, que posteriormente foi devolvido, já que Antônio Paterno não pôde apresentar o titulo de propriedade do lugar. Numa outra tentativa, já nos anos 1960, por meio da Companhia Agrícola Campos Novos, Antônio Paterno vendeu cerca de 25% da extensão territorial total da fazenda à Destilaria Medellín S.A. É provável, ainda que Gabriel e Normária tenham visto o Sindicato de Trabalhadores Rurais, ou até participado dele. Criado pelos lavradores nesta mesma época, para combater os jagunços contratados por Antônio para expulsá-los da fazenda, empunhando placas com slogans como “na lei ou na marra!”, como fizeram as ligas camponesas nesta mesma época.
Este casal, que testemunhou os últimos cem anos de história da fazenda, assistiram o recrudescimento dos conflitos, com envolvimento de empresas, jagunços, policiais e da lua anti-comunista, sobre a qual pouco saberiam dizer. Até que, no governo de João Batista de Oliveira Figueiredo, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) expropriou, sem muito sucesso, a fazenda com fins de reforma agrária. Por último, assistiram uma segunda desapropriação pela prefeitura de Cabo Frio, que transformou a sua sede em Secretaria Municipal de Agricultura e a Abastecimento.
[1] Arquivo do Museu do Ministério da Fazenda. Documentos relativos à fazenda Campos Novos e Campos dos Goitacazes. Códice: 85.20.49.
[2] Lamego, Alberto. Macaé a luz de documentos inéditos. In: Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro, IBGE , n.11, 1958, p. 31.
[3] LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IV. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Lisboa: Livraria Portugália, 1945. p.93.
[4] Idem
[5] Arquivo do Museu do Ministério da Fazenda. Documentos relativos à fazenda Campos Novos e Campos dos Goitacazes. Códice: 85.20.49.
[6] Arquivo do Museu do Ministério da Fazenda. Documentos relativos à fazenda Campos Novos e Campos dos Goitacazes. Códice: 85.20.49
[7] Estes moradores foram apresentados pelo jornal on line Búzios News em sua página http://www.buziosnews.com.br/gabriel.htm (acesso em 31/01/2010 às 12:58h)
[8] CUNHA, Márcio Werneck da. A História da Fazenda Campos Novos, Artigo publicado no jornal o Canal em 19/03/94 e 29/04/1994.
Carlos Engemann e Márcia Amantino são professores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira.
Fantástica essa história !!!!
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